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De um lado, aqueles que recebem auxílio-moradia e, de outro, aqueles que lutam por um palmo de chão. De um lado, aqueles que recebem auxílio-livro e, de outro, aqueles que dormem sobre papelão. De um lado, aqueles que recebem auxílio-alimentação e, de outro, aqueles que comem o resto do lixão. Brasília pode ser vista como a síntese da injustiça de um país que separa os cidadãos por muros, por paredes de concreto (e até por madeirite). Na capital e em todo o país, benefícios no contracheque contrastam com vazios de cidadania e desrespeito à Constituição à luz do dia ou à sombra da noite com tetos de plásticos rasgados. Uma história de diferenças que permanece sob a marca do silêncio e da indiferença que perdura no tempo e parece não ter fim. 

Na cidade dos contrastes, aquele era um dia de comoção nacional. Os gritos de “presente” ecoavam nas ruas e estampavam as capas dos principais jornais do Brasil. Na noite anterior, Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro e militante dos direitos humanos, tinha sido brutalmente executada na “Cidade Maravilhosa”. Protestos se propagavam no país inteiro. Mas outra notícia, que ficou em segundo plano, também virou manchete naquele 15 de março de 2018 marcado por uma paralisação que afetou Brasília e 17 Estados. Uma parcela de juízes tirou o dia para protestar contra a decisão da presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Cármen Lúcia. A ministra tinha agendado, para a semana subsequente (dia 22 de março), a votação sobre o auxílio-moradia, no valor de R$ 4,3 mil. No entanto, os trajes formais e as gravatas das mais diferentes cores contrastavam com as profundas desigualdades existentes bem perto dali. Se membros do Judiciário que gozam de rendimentos próximos ao teto remuneratório constitucional (de R$ 33,7 mil), passaram a lutar por um aumento salarial e por valores adjacentes, existem vizinhos, na capital do contraste, condenados a viver na periferia social.

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A oito quilômetros da simbólica Praça dos Três Poderes, no coração de Brasília, e dos pedidos de benevolência do Judiciário, um grupo de quatro homens, que nunca foi manchete em lugar algum, tentava construir uma proteção contra as rajadas de chuvas em meio ao cerrado seco. Era um plástico transparente rasgado, encontrado na rua, deixado lá, segundo Carlos*, por “Deus”. 

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Ao mesmo tempo que evocam a divindade, sabem que o apego à crença religiosa não elimina a situação de abandono e esquecimento da sociedade. Cego de um olho, o pai de sete filhos se aproxima da velhice em uma realidade mais cruel. A desigualdade impede que o sonho do próprio lar, cada vez mais distante, se concretize. Hoje, os quatro se ajudam para tentar sobreviver à condição de moradores de rua em meio a um conjunto de objetos aleatórios. O fogo baixo, acendido com pequenos gravetos, logo se apaga. Acabou o almoço, disse João*, o encarregado, no dia, por lavar as roupas num pequeno balde encontrado na rua. As 13 batatas fritas, entregues por uma senhora que passeava com o neto na praça em frente, serviram para robustecer a janta. Naquele dia, o Lago Paranoá forneceu o resto: dois peixes pequenos. 

Longe do mato, tem o carpete. No dia 17 de agosto de 2017, a presidente do STF e do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), ministra Cármen Lúcia, assinou a portaria (n° 63 do CNJ) que obrigou os tribunais a revelarem as folhas salariais dos magistrados. A decisão teve repercussão em âmbito nacional e levou os meios de comunicação a divulgar um número, no mínimo, curioso: 71% dos magistrados das cortes estaduais (TJ’s), de todo o país, ganhavam remunerações superiores ao teto constitucional (estabelecido pela Emenda Constitucional n°45). Além dos salários, as folhas de pagamento também traziam os valores gastos com benefícios considerados “indenizatórios”. As justificativas para esses proventos são das mais variadas. O auxílio-moradia é o mais falado e fartamente noticiado, mas também existem outros, como o “auxílio-livro”, “alimentação”, “saúde”, o “auxílio-escolar”, que beneficia os filhos dos magistrados, e, até pouco tempo, um acréscimo salarial para os magistrados do Acre por terem curso superior, além de outras vantagens gozadas de norte a sul do Brasil.

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Estes valores, chamados de “indenizatórios”, não são contabilizados para fins do teto constitucional (que limita os salários aos valores recebidos pelos ministros do Supremo), logo, não pagam impostos. Para o jurista e professor de direito constitucional da Universidade de Brasília (UnB), Marcelo Neves, o teto é superado muitas vezes por auxílios que aparentemente são indenizatórios, mas que na verdade se apresentam como “verdadeiras remunerações”. “Se o limite constitucional está estabelecido, então nenhum juiz pode ganhar acima desse limite, isso seria uma inversão da própria estrutura do poder Judiciário”, explica o professor.

 

A Constituição também estabelece que os salários dos magistrados precisam ser reajustados anualmente, mas como os valores não podem se sobrepor ao teto, a correção não é feita. As associações afirmam que o impasse produziu uma defasagem de 40%. No entanto, o professor explica que o reajuste anual pode, eventualmente, não ocorrer devido à situação econômica do país, além da própria incapacidade de um reajuste desse tipo. Ele também afirma que utilizar valores adicionais para compensar a perda salarial não é a forma mais adequada para se tratar do assunto. “Eles possuem outras maneiras de questionar a falta do reajuste. Eles podem, por exemplo, entrar com uma ação, no Supremo, de inconstitucionalidade por omissão. Mas os juízes não podem e nem devem atribuir a si mesmos uma remuneração que ultrapasse o teto constitucional”.

 

O cientista político e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Marcus André Melo, acredita que “grande parte” desses benefícios são “perversões” democráticas criadas para desrespeitar as restrições legais. Ele explica também que o problema do que chamou de “marajás do serviço público” é antigo, porém se agravou após a promulgação da Carta Magna. De lá para cá, ele esclarece que várias tentativas foram feitas, mas apenas com êxitos pontuais. O pesquisador diz que o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso buscou disciplinar a questão, por meio da reforma administrativa. Mas foram nos governos do ex-presidente Lula que esses benefícios tiveram aumentos em todas as categorias profissionais. “Embora eles se concentrem no Judiciário, onde também se concentram os maiores salários da República, eles estão em todos os lugares das mais diversas formas”, ressalta.

 

O problema é que, no Judiciário, esses valores apontados como “indenizatórios” são muito mais elevados e, na maioria das vezes, têm a intenção de burlar a lei. Enquanto que para outras categorias é mais um benefício adicional (quando não ultrapassam o teto remuneratório). Mas é importante ressaltar que várias delas têm previsão legal, como, por exemplo, o auxílio-moradia (de R$ 4.3 mil), presente na lei que rege a magistratura (Loman).

“Me desculpe senhor, me desculpe / Mas essa aqui é a minha nação”

(“O Cidadão do Mundo”, Nação Zumbi)

“Demoram-se na beira da estrada / E passam a contar o que sobrou!”

(“Admirável Gado Novo”, Zé Ramalho)

“Somos lutadores da vida. Somos pessoas que lutam para sair dessa situação com mais dignidade”

 

CARLOS, 58

Vizinho dos vultosos edifícios arquitetônicos e das principais avenidas de Brasília, um grupo de moradores se dividia em tarefas para aguentar mais um dia como morador de rua. Já fazia três semanas que os quatro moravam juntos em frente a uma praça. O Lago Paranoá, responsável por grande parte do sustento, também estava logo adiante. Eles até permaneciam mais perto da Esplanada dos Ministérios, mas aos poucos acabaram por se afastar com receio das autoridades locais. Albergues também não eram uma opção, já que sempre estavam lotados. Entretanto, o novo local foi um “achado”. Supriu as necessidades de comida, banho e até de limpeza das vestimentas que nunca chegavam a estar realmente limpas.

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Carlos tem 58 anos e é o único, dos quatro, a ter uma renda fixa. A aposentadoria por invalidez se limita ao salário mínimo, no valor de R$ 954. Mas recentemente, o ex-pedreiro se viu em uma situação dramática. Os proventos foram reduzidos significativamente após ter obtido um empréstimo junto ao banco. Quando o vencimento chegou, os números estavam bem acima do imaginado. A informação que havia recebido era a de que iriam cobrar uma “mixaria”, mas Carlos viu o valor quadruplicar e a aposentadoria cair para pouco mais de R$ 500. Foi preciso fazer escolhas difíceis; então, o desespero tomou conta. “Pagar uma casa até consigo, mas ninguém vive só de aluguel. Com esse dinheiro não dá para pagar um lar e viver uma vida digna”, lamenta.

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A aposentadoria impede que Carlos busque uma outra fonte de renda com carteira assinada. Mas a cegueira não o impede de ver que passa por dificuldades humilhantes. No entanto, ele entende que é necessário procurar uma forma diferente de trabalho, já que o que ele recebe não cobre os custos necessários para uma vida minimamente digna. Foi por essa razão que o trabalho informal se tornou a forma de sobrevivência. O serviço de pedreiro, mesmo sem carteira assinada, é impedido pelo ferimento no olho. Mas é na atividade de pastorear e lavar os carros com água da rua, no setor comercial de Brasília, que o morador conquista algumas migalhas em moedas e trocados importantes. “Eu prefiro fazer um trabalho que eu sei que não vai me prejudicar, como lavar um carro, por exemplo. A gente tenta fazer o possível para sobreviver”, explicou.

 

Outro rapaz, (responsável por garantir com um isqueiro o fogo para cozinhar os peixes minúsculos), é um exemplo da dificuldade de se conseguir um emprego formal quando a rua é a única morada. Em todos os lugares que Pedro*, de 43 anos, implorou por um emprego, a exigência era a mesma: um comprovante de residência. Como não tinha auxílio-moradia e nem auxílio-aluguel, ficou devendo. “Viver assim complica até na hora de conseguir um emprego. Se não tem um lugar para morar não tem um comprovante de residência. Como querem que saiamos dessa situação se nem podemos trabalhar?”, irrita-se.

 

Vindo de Belo Horizonte, após se separar da mulher, João* (o mais novo com 38 anos) se juntou à turma após ter constatado que o emprego prometido não existia. Sem dinheiro para retornar à cidade natal, o jovem rapaz ainda clama na rua por uma oportunidade. Mas com as dificuldades, que são muitas, as chances de conseguir um outro emprego diminuíram, mas é na união do grupo que ele mantém a esperança acesa. João lembra como foi acolhido pelos novos amigos. “Eu estava vindo pescar para poder comer e encontrei os rapazes que me convidaram para se juntar e repartir a comida. Gostei da ideia e estou com eles até agora”.

O custo chega a passar dos R$ 800 milhões anuais. Os três poderes da República usufruem dele. Mas é no Judiciário que o auxílio-moradia se torna mais polêmico. Criado para compensar a falta de domicílio caso o servidor público esteja deslocado da cidade onde possui residência fixa, o benefício teve a função alterada. Em 2014, o ministro do STF, Luiz Fux, ao julgar a Ação Originária 1.776/DF, liberou o auxílio, por meio de liminar, a todos os magistrados do país, com exceção dos aposentados, dos juízes onde as comarcas disponibilizam imóveis funcionais e nos casos onde o/a cônjuge recebe o mesmo benefício. O valor chega a R$ 4.3 mil e tem gerado polêmica, em especial, por muitas vezes passar do teto constitucional.

 

Com o valor salarial no teto constitucional e nos confortáveis cômodos dos gabinetes do Supremo Tribunal Federal, o ministro Luiz Fux, em decisão, retomou os argumentos dos impetrantes da ação onde afirmam que uma parte do valor recebido pelo auxílio-moradia tem finalidade alimentar. Entretanto, Marcelo Neves lembra que os magistrados já recebem uma verba relacionada à alimentação. Mesmo assim, a sentença foi favorável.

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Confira trecho do documento que liberou o auxílio-moradia para todos os juízes (ressalvadas as exceções)

“Estão comendo o mundo pelas beiradas / Roendo tudo, quase não sobra nada”

(“Um Sonho”, Nação Zumbi)

Para o jurista Marcelo Neves, conceder a vantagem a um servidor deslocado da comarca pode ser aceitável, mas liberar para todos o juízes (salvo as exceções), transforma o auxílio em um privilégio, o que não é razoável. Ele entende que, a partir do momento em que o valor passou a abranger todos os magistrados, a restituição perdeu o caráter indenizatório e passou a ser uma remuneração a mais. “E, antigamente, após um certo tempo de deslocamento, não se pagava mais, já que se supunha que a pessoa permaneceu naquele local. Então me parece que não há justificativa”, ressalta.

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Caso o auxílio-moradia venha a ser considerado pelas autoridades judiciárias algo ilegal, é “muito pouco provável”, segundo o jurista, que os magistrados tenham de restituir o montante recebido. Como os valores estão sendo entregues de acordo com uma decisão judicial, os servidores públicos estão amparados pela liminar do ministro. “Se eles estivessem sem o apoio dessa decisão, me parece que eles deveriam devolver, pois poderíamos caracterizar a má fé. Mas, nesse caso, acho difícil o caráter retroativo”, explica. 

 

Ele esclarece também que caso o Supremo decida analisar o assunto, a decisão tomada só estará vinculada ao auxílio-moradia, ou seja, não engloba os outros benefícios recebidos pelos servidores públicos.

“É duro tanto ter que caminhar / E dar muito mais do que receber”

(“Admirável Gado Novo”, Zé Ramalho)

Do mundo de compaixão à vida sem empatia —  Os quatro moradores de rua lamentam a falta de solidariedade de grande parte das pessoas que frequentemente passam pelo local, que possui um mato alto e um conjunto de pichações nas construções de cimento, sem se sensibilizar com a situação dos que pouco têm. Mesmo assim, ainda existem alguns pedestres que perguntam se eles necessitam de algo. No frio de Brasília e na falta de comida, a resposta é sempre: sim. Não por quererem se aproveitar da situação de comoção do passante, mas pela real necessidade de buscar o essencial para sobreviver. “Muitas vezes, pedimos um saco de feijão, de arroz, ou qualquer outro alimento que possam nos dar”, diz João. Mas o alimento é doado? A resposta do Pedro é imediata: “Geralmente, não”.

 

O único que chegou a formar uma família foi o Carlos. Só que fazia mais de seis meses que não via nenhum dos sete filhos. Segundo ele, não por uma questão de desavença com os familiares, mas pela dificuldade de conviver com as circunstâncias impostas após a separação. Logo após se divorciar, Carlos precisou lidar com a morte do pai (ataque no coração) e, em seguida, da mãe (câncer). Ainda abalado, o ex-pedreiro perdeu o equilíbrio financeiro e ficou desabrigado. “Eu não quero que eles me vejam em uma situação dessas. Mas eu sempre procuro eles quando estou numa boa. Não quero que eles saibam que estou na rua”, conta visivelmente emocionado.

 

Sem o amparo de uma casa, o frio (de 20 graus) no meio do ano em Brasília se torna um inconveniente perigoso. A resistência não dura sem o acender do fogo nas madrugadas geladas. É assim, e com um conjunto de agasalhos rasgados, que os quatro homens se protegem do clima da capital e das brisas do Lago Paranoá. Mas o clima não é o único problema. Durante as longas noites, é necessário que um dos moradores fique acordado por algumas horas. É preciso resguardar a segurança de todos. Além dos animais que podem ‘atacar’ um deles, também existe o perigo humano. “Ontem mesmo parou um carro aqui com um rapaz. Ele já chegou falando grosso, perguntou se a gente era de algum movimento ou apoiador de Lula (ex-presidente). Nós explicamos que éramos da paz e convencemos o rapaz a nos deixar”, contou Pedro.

“Imagine se ganhássemos esses R$4.3 mil. Daria para alugar uma casa e morar nós quatro juntos. Seria menos quatro pessoas na rua”

 

JOÃO, 38

A fala ao lado demonstra o real valor de tal subsídio. Para uns, esse é um acréscimo indenizatório que ajuda a compensar a falta de reajustes, alegado pelos magistrados; para outros, uma esperança, que mais seria um sonho, mas logo arrasado pelo despertar do colega que teve o turno concluído. Hora da vigília…

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Isso nos faz perceber que, enquanto uns (quase) nada têm, outros buscam manter benefícios indenizatórios que muitas vezes são questionados moralmente.

 

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Por mais que os diversos auxílios estejam previstos legalmente, há o questionamento moral dos benefícios. O professor de ciências políticas Marcus Melo explica que a lei e a moral estão em esferas distintas e que não se pode confundi-las. Mas ele defende que os juízes não devem se preocupar com a questão moral mais do que faz qualquer outro cidadão. Para que os juízes não possam “invocar” algum princípio moral quando julgam, pois precisam tomar as decisões de forma técnica e em função da lei, é que a equiparação do princípio moral deve ser levada a sério. Então, nesse sentido, se algum requisito de moralidade vale para os outros brasileiros, deve também valer para os juízes e vice-versa. Só que, segundo Melo, a maioria desses privilégios podem causar desconfortos ou até um mal civilizatório. “Existem algumas questões básicas da vida pública, onde os cargos também passam a exigir uma certa autocontenção. Então, a rigor, eu diria apenas que é lamentável que os juízes façam isso”.

 

Na visão de Marcelo Neves, o princípio da moralidade precisa ser respeitado. Ele considera que no caso, por exemplo, do auxílio-moradia, os juízes “podem” argumentar que houve decisão judicial e, se a decisão diz que é conforme a Constituição, ela então diz ser conforme a moralidade (já que o princípio está inserido na Carta Magna). Neste caso, o professor esclarece que uma condição de "má fé" dos magistrados não poderia ser computada, mas que é “evidente” que fere o princípio. “A indenização não pode ser um dinheiro extra sem nenhum fundamento indenizatório. Isso não é uma indenização, é um plus no padrão de vida”.

 

Segundo o ex-corregedor nacional e ex-ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), Gilson Dipp, o princípio da moralidade, previsto na Constituição, não é ferido pelos diversos auxílios. Na visão do jurista, a conceituação dos princípios pouco importa, já que “cada um interpreta da maneira que preferir”. Neste sentido, ele diz não se considerar um idealista e afirma que são as experiências e a vida que demonstram o funcionamento das coisas. Por essa razão, ele defende que a Carta Magna, no Brasil, é aquilo que o “Supremo diz ser”. “No Brasil, esqueça a Constituição. Esses princípios são princípios teóricos, abstratos e que são utilizados tão somente quando e a quem interessar, inclusive o Judiciário e o Supremo”, afirma o jurista.

 

E continua: “Então, perguntar o que diz a Constituição, não vale para o Brasil. O que vale para o Brasil é o que diz o Supremo Tribunal Federal. Eu não tenho nenhum pudor em dizer isso. Eu posso até estar te deixando perplexo. Você está com a Constituição aberta (repórter) e eu acho que essa Constituição (o jurista aponta para o livro), ao contrário do que faz o ex-ministro Carlos Ayres Britto, só pode ser aberta em determinadas circunstâncias, principalmente quando se trata de princípios abstratos”.

“Não adianta olhar pro chão / Virar a cara para não ver”

(“Até quando?”, Gabriel O Pensador)

A reportagem entrou em contato com o ex-ministro Carlos Ayres Britto, que não se pronunciou.

Gilson Dipp diz acreditar que o Supremo tem interpretado “muitas vezes” mal a Constituição, mas, segundo o ex-magistrado, “é o que nós temos”. Para ele, o Supremo é o responsável por interpretar a Constituição de acordo com aquilo que ele acha que deve interpretar. “Como dizem os adágios populares: O Supremo pode tudo”.

Em Planaltina (DF), a 31 quilômetros da simbólica Praça dos Três Poderes, no coração de Brasília, e dos pedidos de benevolência do Judiciário, um grupo com cerca de 600 famílias desfruta da simplicidade do lar, após meses de conflitos. Construído com madeirite, restos de guarda-roupas (em pedaços) e outros objetos doados, as casas são feitas para fornecer uma proteção aos fatores externos e uma intimidade à solidão, às vezes presente. A situação foi a única encontrada e é reflexo de uma injustiça social. O salário inexistente, ou a remuneração insuficiente, fez com que famílias se alojassem em terras destinadas ao programa do “Minha Casa, Minha Vida” para terem um pedaço de parede e teto. A negligência estatal existe, mas o local já sofreu com problemas sérios. Segundo os moradores, o acampamento já sofreu “ataques” de milicianos. “Hoje o assentamento se encontra em paz. Antes a situação não era tão simples”, diz Flávio*.

“Esperam nova possibilidade / De verem esse mundo se acabar”

Flávio foi um dos primeiros moradores do acampamento que já perdura por quase dois anos. Ao deixar o Exército, no qual serviu por oito anos, passou a trabalhar como operador de máquina pesada, trabalho que rende um valor superior à média dos moradores do local. No entanto, os quase R$ 2.5 mil recebidos não são o suficiente para pagar a pensão do primeiro casamento e sustentar um novo lar para a esposa e o segundo filho. “Hoje faço parte do pessoal do conselho. Eu fui um dos que encarou de peito isso daqui, do começo até agora. Estamos na luta, correndo atrás para melhorar”, ressalta o morador.

(“Admirável Gado Novo”, Zé Ramalho)

Ele explica que as pessoas do local têm a consciência de que moram em uma área irregular, mas que essa foi a única forma encontrada para “fugir” da chance de passar a viver ou continuar em condição de rua. Em alguns casos, há quem tenha renda para pagar um aluguel, mas existem outras necessidades e obrigações que não conseguem ser custeadas. “Muitas dessas pessoas moravam de aluguel, mas não tinham condições nem de se alimentar direito”, diz Flávio, que continua: “Todo mundo que está aqui quer ter uma conta de luz para pagar, uma conta de água, mas a realidade atual não permite”.

Quando o ministro Luiz Fux proferiu a decisão de ampliar o auxílio-moradia, uma dúvida apareceu. Os servidores públicos iriam receber o valor extra de maneira automática ou era preciso solicitar? A incerteza durou pouco mais de um mês, até que o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) emitiu a Resolução n° 199, que condicionou o recebimento à formalização de pedidos individuais.

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Veja trecho do documento:

“Quando isso acontece, fica muito difícil de se explicar à sociedade”

Desembargador João Barcelos

Nesse meio tempo, o desembargador do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, João Barcelos de Souza Júnior, já havia solicitado, na presidência do TJ, para não receber o benefício. Mas após 15 dias, o então presidente da comarca, desembargador José Aquino Flôres, afirmou não ser necessária a medida, já que o CNJ tinha regulado o assunto. “Uma semana antes protocolei um pedido, já que parecia que a decisão do CNJ seria no sentido de receber o benefício de forma automática”, lembra o desembargador João Barcelos.

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Confira um fragmento da solicitação do magistrado João Barcelos de Souza Júnior:

Confira o fragmento da resposta:

A medida foi tomada pelo magistrado por ele não considerar apropriado o recebimento do valor extra já que possui uma moradia fixa. Ele conta que caso estivesse deslocado, teria uma razão legítima para considerar o recebimento, mas não é o caso. O jurista também explicou que não concordou com a liminar emitida pelo ministro, que, para ele, não existia nenhuma urgência em soltar a decisão, que gerou efeito cascata. “Foi uma liminar com repercussão financeira jamais vista. Eu que trabalho na Câmara (do TJ), que lida com a fazenda pública, jamais teria concedido uma liminar como essa”, afirma.

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O desembargador diz não julgar o posicionamento adotado pelos demais servidores (em aceitar o auxílio-moradia), pois entende a razão dos outros juízes. “Fica difícil para os colegas terem um valor para receber e dizer não. Com família, a decisão não é tão simples. E também, não é da responsabilidade dos colegas, mas de quem entrou com e quem julgou a ação”, explica.

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João Barcelos esclarece que nunca se sentiu pressionado ou retaliado por tomar a atitude e defender o que acredita. “Eu sempre fui muito transparente nas minhas motivações para não aceitar. Isso sempre ficou claro aos meus colegas”. No entanto, para o magistrado, o Judiciário precisa tomar “muito cuidado” para não errar, em especial, quando as decisões tomadas beneficiam os próprios membros. “Quando isso acontece, fica muito difícil de se explicar à sociedade”.

Os privilégios do juízes já não são recebidos pelos noivos Vinícius* e Carolina*

Sorrir é a forma utilizada para não aumentar os problemas já vividos

Também moradores do acampamento em Planaltina (DF), o casal viu as despesas não se limitarem ao consumo de água e de energia. Eles enfatizam que os gastos são dos mais variados. São com remédios, com o uniforme escolar da criança (de cinco anos), com o material escolar e com outros custos que sempre aparecem. Tudo isso impede que o sonho de um lar, minimamente decente, tome forma. Por essa razão, Carolina (de 26 anos) esclarece que o assentamento foi a “solução” para o casal. “Estávamos na casa de minha mãe, mas por questões financeiras ela precisou se desfazer do local. Quando ela se mudou, não nos cabia, já que a casa tinha diminuído, então ficamos sem ter para onde ir”, explica.

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Ela trabalha em uma “lojinha” de xerox e gráfica rápida, mas não chega a ganhar R$ 500. Vinícius (de 22 anos) é promotor de vendas de um atacado em Planaltina e recebe um salário mínimo como pagamento de um mês de trabalho. Os quase R$ 1.5 mil não eliminam o desconforto de estarem em uma área irregular, mas contribui com um momento de felicidade ao constatarem que podem usufruir do que possuem. “Por mais que não está escriturado, por mais que a gente precise enfrentar uma luta grande, por mais que esta não seja a casa dos nossos sonhos, podemos dizer que temos o nosso teto. A gente pode fazer um investimento de um sofá, por exemplo, e botar dentro de casa sabendo que é nosso e que ninguém vai tomar”, entusiasma-se o morador.

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Vinícius lembra que, quando foi avisado sobre o acampamento, logo se animou em solicitar um espaço. A ajuda do pai, também morador e vizinho da atual casa dos noivos, foi essencial para convencer os dirigentes do acampamento. Ele lembra que grande parte do material usado para construir a casa foi doado pelas outras famílias. “Tudo que a gente teve (para construir a casa), a gente ganhou. Essa casa não tem nada de madeirite, não é nada padrão, mas a gente conseguiu um guarda-roupa aqui, outros pedaços de madeira ali. Os únicos gastos foram com as telhas e com os pregos”.

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Os pais de Vinícius, Benedito e Maria Célia, completaram, neste ano, 30 anos de casados. Eles foram os primeiros da família a escolher o acampamento para morar. Benedito conta que trabalha como pedreiro, mas que, após ser demitido do antigo emprego e pelo momento atual de crise, o serviço “nunca” mais teve dia certo. Ao final do mês, o valor recebido varia, mas explica a situação vivida. “Existem meses que chega a R$ 600, outros que chega a R$ 1 mil, mas também existe mês que não aparece nada e a remuneração não vem”, lamenta Benedito.

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O casal manifesta a mesma dificuldade dos filhos em conseguir pagar um aluguel e manter uma condição razoável de sustento. Para eles, viver de aluguel é “impossível” quando se ganha tal valor salarial. Então, a solução foi procurar um acampamento no entorno de Brasília para pedir um local que pudesse morar. Encontraram este assentamento perto da Região Administrativa de Planaltina e construíram a casa com a ajuda dos vizinhos e com a madeirite comprada com a pequena poupança acumulada.

Ele não pediu

Com 65 anos de idade e 35 de magistratura, o juiz Paulo Romero de Sá Araújo, do TJ pernambucano, conta que nunca chegou a fazer o pedido para receber o auxílio-moradia. Segundo o magistrado, a atitude se deu, exclusivamente, por uma questão prática. Como o STF ainda não analisou o mérito do benefício o juiz possui o receio de, posteriormente, ter de devolver o valor recebido. “Se o Supremo chegar a decidir que sim (que é Constitucional), então posso até chegar a pedir”, explica.

 

No entanto, Paulo Romero “acha” que o ressarcimento seria justificável caso ele chegasse a ser remanejado para outra comarca, por possuir caráter indenizatório. Ele esclarece que a recusa decorre da realidade vivida na infância. Um dentre nove irmãos, Paulo Romero lembra das dificuldades financeiras enfrentadas quando era jovem e os sacrifícios feitos pela família para que ele conseguisse estudar. Hoje, o dinheiro que recebe como juiz paga o sustento dos três filhos. “Não entrei na magistratura para fazer fortuna. É claro que ajudou a tirar a minha família e a mim daquela realidade, mas entrei por um sonho profissional. Hoje, tenho o necessário”, esclarece.

Ele recusou

Um juiz auxiliar, sediado na comarca de Passo do Lumiar, no Estado do Maranhão, teve uma atitude diferente. Em documento enviado para a presidência do Tribunal de Justiça do Maranhão, Carlos Roberto Gomes de Oliveira Paula, que recebia os valores referentes ao auxílio-moradia, saúde, alimentação e livro, diz considerar que as críticas da população são pertinentes. Por essa razão, formalizou um pedido para que o tribunal deixasse de lhe conceder o que chamou de “penduricalhos”.

 

Para o magistrado, todos esses auxílios mencionados são “vedados” pela Constituição Federal. Carlos Roberto Gomes também menciona no documento que o fato dos magistrados não terem os salários reajustados, como disciplina a lei, não justifica “legal e eticamente” a compensação por meio de verbas "indenizatórias". O impasse da discussão da medida pelo STF também é um dos argumentos utilizados pelo juiz para renunciar aos benefícios.

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Confira trecho do documento encaminhado ao presidente do TJ:

Benefícios de magistrados por Estado

Veja trecho da resposta da presidência do TJMA ao juiz:

A reportagem não conseguiu entrar em contato com a comarca do juiz Carlos Roberto Gomes de Oliveira Paula.

Auxílio-diploma

Eles são “doutores”, o que não é fácil em um país com o número de analfabetos próximo aos 12 milhões, segundo dados do IBGE (2017). Não que necessariamente eles tenham feito doutorado ou algo do tipo. Mas, com certeza, tiveram de estudar muito. No Estado do Acre, os magistrados recebiam um acréscimo de 40% do salário por possuírem “nível superior”, o que é inerente à profissão. Desde 1996, o benefício era recebido pelos membros do Judiciário, mas a ação popular contra a gratificação só chegou a ser julgada pela Suprema Corte no ano passado. No dia 28 de agosto, o ministro Gilmar Mendes, decidiu por retirar a vantagem e condenar os beneficiários a devolverem as quantias recebidas com relação aos cinco anos anteriores, acrescidos de juros e correção monetária.

 

A gratificação vinha sendo paga, segundo sentença emitida pelo ministro, de forma ilícita e com base em um ato emitido anos antes pela presidência do Tribunal de Justiça do Acre. O Ato Normativo 143 de 1989 visou equiparar os vencimentos dos magistrados acrianos com os do Distrito Federal, mas a norma já havia sido extinta, pois o mesmo ato havia decidido revogar “qualquer” outra vantagem. Por essa razão, a presidência do TJ buscou reinstituir a vantagem extinta. No entanto, foi com esse argumento que o TJ acreano modificou a redação do artigo 326 da Lei Complementar estadual N° 47.

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Leia a redação original do artigo 326:

Veja a redação modificada do artigo 326:

Segundo a decisão do ministro, os querentes da ação alegam que "tribunal cometeu fraude" ao introduzir o termo “inclusive aos magistrados” e modificar o texto da lei. Mas foi com esse argumento, juridicamente inexistente na legislação original, que todos os juízes e desembargadores do Estado passaram a ter direito ao adicional de 40% do salário, justamente por não ser possível ocupar a magistratura sem diploma universitário.

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Ao responderem os questionamentos elaborados pela reportagem, por meio da Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), sobre os benefícios recebidos pelos magistrados nos últimos cinco anos, o Tribunal de Justiça do Acre não mencionou a existência do chamado “auxílio-diploma”.

A reportagem entrou em contato com o gabinete do ministro do STF, Gilmar Mendes, que preferiu não se pronunciar.

Veja o trâmite do processo sobre auxílio-diploma

Para o membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores sem Teto (MTST), Eduardo Borges, a realidade expõe um déficit habitacional “escandaloso”, em que Brasília se posiciona como o reflexo de um país desigual. Mesmo assim, segundo o militante, a luta tem aumentado nos últimos anos, já que a concentração de renda faz com que uma expressiva parte da população não tenha “absolutamente nada”.

As folhas remuneratórias dos juízes, na visão de Borges, se tornaram um reflexo dessa desigualdade. “Só o valor referente ao auxílio-moradia dos juízes representaria um salto enorme na qualidade de vida dessa gente. Se o morador sem teto ganhasse metade disso já seria uma conquista expressiva”, ressalta.

“Brasília tem 'lutado' para ser o espelho do país nos piores aspectos".

A capital federal, criada para ser uma referência e um modelo de cidade, acabou por se tornar reflexo das piores desigualdades presentes no Brasil. Borges acredita que “Brasília é a cidade mais desigual que tem no país. Nós, por exemplo, temos mais de 100 mil pessoas sem moradia”. Em 2017, o déficit habitacional do Distrito Federal chegou a marca das 120 mil unidades, segundo dados divulgados pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional (Codhab).

Eduardo Borges diz enxergar os benefícios dos magistrados como um retrato da desigualdade social. Ele explica que o direito à moradia é garantido pela Constituição Cidadã, mas que não é respeitado. Em contraponto, ele considera que, quando os direitos de membros privilegiados da sociedade, como os magistrados, são “levemente” desrespeitados, por serem abusivos demais, logo o problema é contornado. “A pessoa que tem a própria casa, que ganha bem, lutando para receber R$ 4.3 mil de auxílio-moradia. Isso é escandaloso, é uma vergonha para o Brasil”, reclama o militante.

Pensado para ser um órgão auxiliar e de controle do poder Judiciário, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem sido questionado pela dificuldade em punir os magistrados que cometam atos discutíveis administrativamente e que pratiquem condutas ilícitas graves. Para a ex-corregedora nacional e ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Eliana Calmon, existem dois problemas essenciais. O primeiro é a dificuldade de se investigar crimes graves, como os de corrupção, pela própria natureza do delito. Já o segundo empecilho é a existência de uma “cultura” de que o Judiciário não tem poder de investigar os próprios membros.

 

A ex-ministra explica que, como a carreira da magistratura é “muito exposta”, a lei ampara o julgador para que ele não seja alvo de vingança. Porém, essa proteção torna o trabalho investigativo mais complicado.

“O caminho é longo e, muitas vezes, lá no final da linha, se esvai no tempo

Eliana Calmon

Para Eliana Calmon, além da magistratura continuar na contramão dos avanços sociais, existe um excesso de “espírito de corpo” que precisa ser combatido, já que esse sistema representa uma cultura “errada”, além de equivocada em uma sociedade cada vez mais transparente, que possui instrumentos de mídia e que “tudo se fala”.

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A jurista lembra que buscou aplicar formas de controle já utilizadas pelos outros poderes da República. A mais difícil de se implementar foi o simples questionamento às declarações de bens dos magistrados. Mesmo de maneira preliminar, com direito ao contraditório e com diversas investigações iniciais, os desafios eram grandes. Eliana Calmon relata que todas as vezes que tentou levar as suspeitas de incompatibilidade de patrimônio para o plenário do CNJ, “esbarrava” com o argumento de que “contra magistrado não é possível se fazer investigação patrimonial”. “Então todas essas investigações patrimoniais ficaram paradas por pedidos de vistas", lamenta.

“Tradicionalmente o poder Judiciário não investiga os próprios membros

Eliana Calmon

Por outro lado, a jurista afirma que a forte “cultura” enraizada no Judiciário brasileiro, de que não se pode enfraquecer a instituição, é o grande responsável pelo baixo número de magistrados julgados pelo órgão. Neste contexto, integrantes da magistratura acreditam que o fortalecimento das investigações a integrantes que tenham cometido condutas questionáveis debilita o sistema judicial. Ela diz que, para estes servidores, quando um juiz corrupto é investigado ou condenado, o poder Judiciário se enfraquece.

 

A ex-corregedora diz discordar desta interpretação. Para ela, não adianta a magistratura querer “esconder” o servidor corrupto da população. A sociedade, na visão da ex-corregedora nacional, saberá, de uma forma ou de outra, ou por meio dos advogados, que possuem um convívio próximo aos juízes, ou por meio dos jurisdicionados. “Essa cultura precisa ser extirpada do poder Judiciário. O poder Judiciário precisa se convencer de que ele precisa investigar os seus próprios membros. É necessário para sanear a magistratura para se reabilitar perante à sociedade brasileira”, defende.

“O pedido de vistas é para perder de vista e esvaziar essa história de haver investigação patrimonial contra magistrado

Eliana Calmon

A maior pena imposta pelo plenário do CNJ é a de aposentadoria compulsória. Sendo assim, o órgão com características fiscalizadoras não pode retirar o cargo do magistrado, mesmo em casos extremos. No entanto, as provas recolhidas pelo tribunal podem ser encaminhadas ao Ministério Público que pode entrar com ações criminais contra o magistrado, no poder Judiciário. O problema é a dificuldade de se examinar a conduta do membro perante o CNJ, que leva tempo para examinar as provas e, talvez, chegar a condenar o réu, caso em que, perante o poder Judiciário, dessa vez, penalmente. O longo processo para se chegar a uma definição nas duas esferas pode causar distorções, como o retorno do magistrado ao exercício do cargo, após ter a conduta prescrita.

 

Questionada sobre a diferença de punição de juízes com relação às condutas de cidadãos comuns, a jurista defende que a distorção ocorre por “não se fazer as coisas da maneira certa”. “Eu como corregedora tenho o processo administrativo, assim, tiro o cargo do juiz com a pena de aposentadoria compulsória. Então, eu extraio peças processuais e mando para o Ministério Público abrir um procedimento judicial. Aí ele poderia vir a ser exonerado. O que é que está acontecendo? Esse processo judicial não se faz (concluído), porque o Ministério Público faz uma denúncia, a denúncia fica lá e ninguém julga”, explica.

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Segundo a ex-ministra, a aposentadoria compulsória foi assim “toda a vida”. Só que ela explica que, no passado, os membros acusados de atos ilícitos eram chamados pelos pares que já exibiam a carta de demissão. Eles então diziam que, se o magistrado não assinasse a o documento, o órgão iria dar publicidade às acusações. “A vergonha era maior. Ele assinava e ia embora”.

Ressaltado por Eliana Calmon como o responsável por iniciar as investigações contra juízes perante o CNJ, o ex-corregedor nacional Gilson Dipp destaca que as investigações contra magistrados são inéditas no Brasil. Ele conta que, pela crença de que os juízes eram intocáveis, não foi fácil para o plenário do CNJ, que é formado em grande parte por magistrados, julgar um colega. Entretanto, o jurista defende que o órgão já demonstrou, “várias vezes”, que a fiscalização tem se tornado cada vez mais rígida: “Seja na infração administrativa, seja nos processos penais, não tenho dúvida que existe sim uma dificuldade de se julgar um magistrado”, afirma.

 

Segundo o ex-ministro do STJ, as associações de magistrados, por mais que tenham um “cunho corporativo”, não chegam a impedir que haja uma punição ou julgamento de algum ilícito. Por isso, ele acredita que a expressão "capturado" seria forte demais para ser utilizada. Mas reconhece que o CNJ sempre foi “sensível” às manifestações dos juízes.

 

Gilson Dipp conta que a discussão da criação de um órgão externo ao Judiciário foi uma tentativa que abalou os “pilares da magistratura”. Chegou-se, então, a um meio termo, que é o controle misto. O CNJ exibe, em sua composição, membros do Ministério Público, de juízes, de advogados e magistrados de tribunais superiores. Só que a atual composição é alvo de críticas do ex-membro. “Se o CNJ não exercer dignamente o seu papel com eficácia, eficiência e transparência, sei lá se amanhã ou depois, nesses radicalismos que estão se potencializando no Brasil, não ressurge a hipótese de um controle externo total”, preocupa-se.

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Como o CNJ só pode condenar um dos membros com relação à conduta administrativa, a aposentadoria compulsória, segundo a ministra Eliana Calmon, serve como uma contraprestação dos valores pagos, até então, ao sistema previdenciário. Sendo assim, o magistrado passa a receber o valor salarial equivalente ao tempo de contribuição e passa a não ter mais direito às benesses do cargo (como, por exemplo, os diversos auxílios). Na atual conjuntura, esta seria a única possibilidade de um juiz não receber os tais benefícios (ou penduricalhos), aqui questionados.

Empossado em 2016, o atual Corregedor Nacional, João Otávio de Noronha, teve o discurso de posse relembrado por Eliana Calmon. Para ela, o pronunciamento vai de encontro aos deveres incumbidos ao CNJ. “O que foi que ele disse? ‘Eu estou aqui para blindar os magistrados’”, conta.

 

No dia 24 de abril de 2018, a reportagem entrou em contato com a assessoria do CNJ e com a equipe do atual corregedor, João Otávio de Noronha, que solicitou as perguntas por escrito. Nenhuma delas foi respondida até a publicação desta reportagem. 

A reportagem entrou com um pedido de acesso à informação no Conselho Nacional de Justiça para conseguir o número total de magistrados aposentados compulsoriamente pelo tribunal. Criado em 2005, o órgão só veio a ter um magistrado condenado à pena máxima em 2008. Até então, foram 54 membros (último dado referente ao ano de 2017).

Após a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, divulgar a data (22 de março) para o plenário analisar a constitucionalidade do auxílio-moradia, os protestos dos juízes cresceram. Depois, porém, a ministra acatou um pedido inicial da defesa do ex-presidente Lula para se votar, no plenário da corte, a possibilidade ou não de um julgamento sobre a possibilidade de o tribunal conceder um Habeas Corpus (HC) ao réu. No dia 21 de março, um dia antes da discussão sobre o futuro do ex-presidente Lula, o mesmo dia em que, anteriormente, estava previsto a discussão sobre o auxílio-moradia, o ministro Luiz Fux, relator dos processos sobre o auxílio-moradia, acatou o pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e remeteu todos os pedidos que questionavam a constitucionalidade do benefício à Câmara de Arbitragem da Administração Federal, ligado à Advocacia Geral da União.

Veja o trecho da decisão do ministro na Ação Originária 1.776/DF:

Por: Lucas Valença

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Arte de capa: Camila Campos

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Colaboração na produção do site: Vitor Mendonça

Após a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, divulgar a data (22 de março) para o plenário analisar a constitucionalidade do auxílio-moradia, os protestos dos juízes cresceram. Depois, porém, a ministra acatou um pedido inicial da defesa do ex-presidente Lula para se votar, no plenário da corte, a possibilidade ou não de um julgamento sobre a possibilidade de o tribunal conceder um Habeas Corpus (HC) ao réu. No dia 21 de março, um dia antes da discussão sobre o futuro do ex-presidente Lula, o mesmo dia em que, anteriormente, estava previsto a discussão sobre o auxílio-moradia, o ministro Luiz Fux, relator dos processos sobre o auxílio-moradia, acatou o pedido da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) e remeteu todos os pedidos que questionavam a constitucionalidade do benefício à Câmara de Arbitragem da Administração Federal, ligado à Advocacia Geral da União.

Veja o trecho da decisão do ministro na Ação Originária 1.776/DF:

Por: Lucas Valença

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Arte de capa: Camila Campos

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Produção do site: Vitor Mendonça e Lucas Valença

A reportagem entrou em contato com as duas principais associações de magistrados (AMB e Ajufe), que não responderam aos questionamentos até a publicação deste conteúdo.

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