
Parto: elas exigem respeito antes, durante e depois




Episódios de violações de direitos trazem à tona a falta de legislação eficiente em um país em que parto humanizado ainda não é regra. Profissionais de saúde explicam como é possível reconhecer esse tipo de violência.
Um corredor escuro. “Ei, moça, preciso urinar”. Não houve resposta. “Ei, moça, preciso urinar”. Silêncio. “Preciso urinar”. A força falta nas pernas e a dor palpita no corpo. O lençol vira fralda. Alguns curtos ou compridos segundos passam e a garganta já está seca de tanto gritar. Uma enfermeira aparece. O barulho agora é de conversas. Boatos de uma moça que estaria dando a luz e reclamando da dor. Mulheres aqui não podem sentir dor. Três dias de trabalho de parto. Mesmo esgotada, os pés caminham em direção à sala. Deitada na maca, um antebraço força a saída do bebê. Sem anestesia ou permissão, o bisturi dilacera a pele que unia a vagina ao ânus. “Ei, moça, estou sentindo o corte”. O parto é lindo, disseram. Os profissionais de saúde sabem o que fazem, garantiram. O que esqueceram de falar: esse desrespeito tem nome, violência obstétrica. Esse é o relato real de Maria*, em 2012. Mesmo após cinco anos, histórias como essa continuam na memória da mãe da família.
Além da manobra de Kristeller não autorizada, Maria conta que após a episiotomia (o corte), a médica, para testar o nível de anestesia, jogou água nela. “Ela perguntou se estava gelada ou quente, eu falei que estava gelada. Tomei mais de dez pontos e para me confortar a médica disse que ia fazer o ‘ponto do marido’ para deixar a vagina mais apertada“. Maria, agora com 24 anos, diz que na época não tomou nenhuma medida, “somente hoje em dia se fala sobre isso”.
*Os nomes foram alterados para a segurança das entrevistadas.
Para a obstetra Sabrina Gadelha, violência obstétrica é “uma invasão ao corpo da mulher”. A profissional explica que a definição desse tipo de violência é ampla por englobar procedimentos físicos e psicológicos pelos quais a vítima pode passar na gestação, no parto e no puerpério. Agressões verbais, recusa de atendimentos, privação de acompanhante, lavagem intestinal, jejum, raspagem de pelos, episiotomia, manobra de Kristeller e separar a mãe do bebê são as violações mais comuns.
A médica epidemiologista Daphne Rattner afirma que violência obstétrica é apenas uma ramificação de outras violências sofridas pelas mulheres. “Uma cultura que legitima um estupro coletivo de uma menina de 16 anos permeia todas as atividades da sociedade, inclusive a assistência de hospitais. Nós temos relações de poder dentro dos serviços que reproduzem as relações de poder da sociedade”.
Para a médica, violência obstétrica é um termo complexo de ser definido. Para isso, deve ser caracterizada em três diferentes categorias: interpessoal, de serviço, e sistemática*. Além disso, a médica apoia as classificações feitas pela Organização Mundial da Saúde, em uma cartilha distribuída desde 1996. Nela são classificadas as práticas de atenção ao parto em quatro grupos. O Grupo A, práticas benéficas que devem ser incentivadas. Grupo B, práticas danosas, inefetivas e que devem ser abandonadas. Grupo C, práticas que precisam de mais pesquisa e Grupo D, práticas usadas fora do contexto, como a cesariana e a episiotomia, que tem poucas indicações e são largamente difundidas.
O que é violência obstétrica?
*Interpessoal - Violência entre a pessoa que deveria estar cuidando da mulher e ela. É caracterizada por por negligência (fazer procedimentos sem explicação), agressão verbal e física. Para Daphne Rattner, a manobra de kristeller entra nessa categoria. A médica defende a tese de que a manobra deve ser abolida por não possuir evidências positivas, e para ela, a tradição é o que mantém os profissionais utilizando.
*Interpessoal: violência entre a pessoa que deveria estar cuidando da mulher e ela. É caracterizada por por negligência (fazer procedimentos sem explicação), agressão verbal e física. Para Daphne Rattner, a manobra de kristeller entra nessa categoria. A médica defende a tese de que a manobra deve ser abolida por não possuir evidências positivas, e para ela, a tradição é o que mantém os profissionais utilizando.
Serviço: é a negação de atendimento e garantias da mulher, como direito à acompanhante, por exemplo. Daphne considera que práticas que deveriam ser abandonadas porque são danosas e inefetivas são uma violência no nível de serviço. “Quando estudei medicina, há muito tempo atrás, tudo que aprendi está hoje classificado no grupo B. O problema é que esses procedimentos continuam sendo usados nas mulheres. Então, parte da violência obstétrica é utilizar procedimentos que estão listados como práticas danosas, inefetivas e devem ser abandonadas.”
Sistema de saúde: para a profissional, esse tipo de violência pode ter relação com a negação ou com a falta de garantia dos direitos da mulher como cidadã. “Uma mulher que na hora do parto precisa sair batendo de porta em porta de hospital para conseguir vaga, é uma violência no nível de sistema de saúde. Isso porque não há a garantia do direito à assistência ao parto, como garante a lei nº11.634/2007”, afirma.
*Para ler o especial inteiro, clique também nas páginas "Agressões", "Legislação", "Humanização" e "relatos"